terça-feira, dezembro 20, 2005

FELIZ ANO NOVO

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Que todos os desejos, mesmo os mais simples e insignificantes, mas sempre tão importantes, se realizem em pleno, em 2006.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Fim de semana inesquecivel

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Não tenho complexos quanto à minha formação. Arranquei uma licenciatura a ferros em psicologia, que nunca cheguei a exercer, jamais me passou pela cabeça fazer uma pós graduação e muito menos um mestrado, fosse do que fosse. Naquele momento arrependi-me amargamente de não o ter feito. Durante toda a noite enfrentei um mestrado em sensualidade amorosa e um doutoramento em sexo contorcionista. Tudo contra o meu auto didactismo. Valeu-me a minha capacidade de aprendizagem rápida e a faculdade que sempre tive em me adaptar às situações mais exigentes. Tinha algo a meu favor: seja qual for a formação, a capacidade imaginativa acaba sempre por dominar. E momentos houve em que dominei. Tirei o meu mestrado. Confirmei o meu doutoramento. Aclamado com distinção. Exigência do repetir. Mas aquele dominar cedendo que nos faz tremer, estremecer, fechar os olhos e deixar-se ir. E todos os outros momentos. Foi sempre do meu apreço aquele principio, uma vez eu, outra vez tu e quando o milagre acontece, porque não ao mesmo ritmo e tempo. E depois a igualdade é muito bonito e nunca fez mal a ninguém. Não sei se bati o meu recorde, na verdade nem mesmo sei se tenho algum recorde, mas que perdi a conta, lá isso perdi.

Acordei com o sol batendo-me na cara. Acho que não cheguei bem a dormir duas horas. Ora, para dormir há sempre tempo!

- Foi o sol que te acordou? – Perguntou, deitada a meu lado. – Durmo sempre de persiana aberta. Deu para descobrir.

- Foi o sol e uma fome danada. – Respondi. Na noite anterior o jantar tinha sido leve. E depois o exercício físico sempre me abriu o apetite.

- Será que ainda aguentas um bocado? – Um sorriso completava a pergunta.

Podem não acreditar, mas senti o meu corpo tremer todo. Não passo de um homem perfeitamente normal, não possuo nenhuns super poderes e não suporto sequer a ideia de ouvir: não tem importância, querido, isso acontece. Sentia-me esgotado, vazio e sem forças para fazer qualquer movimento. A não ser que se esteja casado há mais de dez anos, ninguém tem a coragem de dizer isto a uma mulher linda, perfeita e deitada nua a nosso lado. Rodei o corpo, estendi um braço e nos beijamos.

Mais uma vez mostrou que se tratava de uma mulher refinadamente inteligente e de fino trato. Deixem para lá os pormenores, mas aquilo que eu pensava que só depois de uns bons quinze dias de absoluto repouso é que voltaria a dar acordo de si, eis que, sem qualquer constrangimento ou timidez, não se fez rogado e grita presente. Compreensiva, encarregou-se ela de todo o trabalho, se é que tal palavra se deve empregar. A mim restou-me estar presente. Uma presença suavemente participativa. O cansaço não me permitia os ímpetos da noite anterior. Deu para cumprir e não deixar os créditos por mãos alheias.

Foi um fim de semana absolutamente inolvidável. Jamais faço projectos, mas acho que, em dado momento, fiz alusão a um futuro qualquer. Coisa leve, quase imperceptível, mas que foi o suficiente para me preocupar. Foi algo de instintivo. Não gostei. Felizmente ela não o entendeu como tal ou se entendeu fez de conta que não, e a coisa passou em branco. Atirei as culpas para o cansaço.

A nossa despedida do fim de semana decorreu durante o jantar num pequeno e acolhedor restaurante em Cascais. Enquanto pousava na mesa o copo de água, depois de ter bebericado uns pequenos golos, disse-me que no dia seguinte, às cinco da tarde, apanhava o avião para os Estados Unidos. Fora convidada para uma faculdade e pensava montar arraiais por aquelas bandas. A notícia fora de chofre e, no primeiro segundo, não reagi. Em boa verdade, que raio de reacção é que eu haveria de ter? Fiz perguntas de circunstâncias e durante a sobremesa desejei-lhe um mundo de felicidades. Recebi um convite para a visitar e a promessa que me escreveria.

Deixei-a à porta de casa e ali nos despedimos. Não fui ao aeroporto. As despedidas naquele local sempre me angustiam.

Já passaram sete meses e até agora não recebi nem sequer um simples postal. Cá no meu intimo também não esperava receber. Acho ser esta a razão, pela qual não consigo recordar-me do nome dela. Sou capaz de repetir palavra por palavra, todas as nossas conversas, descrever com precisão cada curva do seu corpo, cada marca na sua pele, cada gemido, cada sorriso, mas não consigo recordar como era mesmo o seu nome. É tão estranho este esquecimento que muitas vezes sou assaltado pela dúvida, se ela alguma vez, me tenha dito o seu nome.

Na próxima, nem que tenha de tirar fotocópia do bilhete de identidade. Juro que não vou esquecer.

sábado, dezembro 10, 2005

Fim de semana inesquecivel (4)

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A pontualidade, para mim, é um ponto de honra. Talvez seja uma qualquer costela britânica, resultado de algum devaneio de um antepassado meio, que não tinha coisa melhor do que escolher uma inglesa. Se tal for, não passa de uma bastardia, pelo que não me vou dar ao trabalho de consultar a árvore genealógica. Eram oito em ponto quando o dedo indicador premia o botão do sexto esquerdo, do número 27. Por razões óbvias, dispenso-me de referir a rua. Com um estalido a porta abriu-se. Perguntar quem era, para quê, se estava ali câmara a transmitir para um pequeno ecran a minha cara. Apanhei o elevador, rápido e silencioso. O do meu prédio range por todos os lados em sinal de sofrimento em cada subida e descida. Só mesmo os corações fortes, é que conseguem utilizar aquela geringonça.

Não foi preciso tocar novamente, pois mal me aproximei, esta abriu-se. Recordava os olhos azuis, o cabelo loiro e as coxas perfeitamente modeladas. Todo o resto estava um pouco confuso na minha memória. Naquele momento refresquei a memória e regalei-me. Ela tinha tudo o que eu, lá muito no meu íntimo, gostava de ver numa mulher. Suavidade na maquilhagem, cabelo penteado a transmitir liberdade e uma vontade louca de passar os dedos, um vestido de linhas simples a moldar o corpo, mostrando os bicos dos seios e duas finas linhas em forma de V, indicando a única peça íntima. Tudo o resto, promessas. Um mundo de promessas!

- Vou buscar a bolsa. – Disse, franqueando-me a entrada. Fiquei sem saber se a devia seguir, ou ficar ali. Limitei-me a dar dois passos e aguardei. Nem sequer fechei a porta. Vá lá saber porquê.

Ainda hoje estou para saber como é que eu consegui conter-me, enquanto descíamos no elevador. Jesus, aquele perfume!

Sugeri um restaurante muito simpático, com um serviço excelente, vista para o rio, ali para os lados de Santa Apolónia. Um jantar suave. Não, acho que não foi um jantar romântico. Conversamos sobre tudo, rimos com discrição que o lugar exigia e usufruímos do prazer um do outro. Posso dizer que se tratou de um jantar perfeito.

Um passeio pela marginal, a noite convidava, um copo num pequeno bar da praia e o regresso. O principio do fim de uma noite maravilhosa. Benditos pés doridos!

Jamais resisti a um convite embrulhado com um sorriso. Claro que aceitei o pouco imaginativo, último copo. Voltamos a utilizar o elevado, entramos em casa e acedi à sugestão de me pôr à vontade e, de uma forma displicente, coloquei o casaco nas costas de uma cadeira e desapertei o nó da gravata. Refastelei-me no sofá e aguardei.

- Vou preparar as bebidas. Disse. Cá no meu íntimo, achei que era apenas um modo de falar. Recordo que, durante o serão ambos termos reconhecido que não éramos muito apreciadores de bebidas alcoólicas.

Puro engano. Dois copos, balde de gelo e uma garrafa de “Martins”. Lixei-me! Há três coisas às quais tenho uma tremenda dificuldade em resistir: Livros, mulheres e “Martins” vinte anos. Obviamente nem sempre por esta ordem.

A… não acredito! Continuo a não saber como era mesmo o nome dela. Uma coisa eu tinha de reconhecer, além de uma mulher muito bonita, com um corpo de deixar um pobre diabo como eu, sem respiração, era uma excelente conversadora. Engenharia de gestão e já com um mestrado no seu currículo. Se alguma vez me passou pela cabeça aquele hábito já tão cansado, da loira com um livro de arte gótica só por causa das imagens serem bonitas, após os primeiros cinco minutos de conversa logo se dissipou. Para os seus 34 anos. Até que não estava nada mal servida. Portanto, aquela afirmação de estar a folhear um livro de arte gótica apenas porque as fotografias eram fascinantes, não tinham passado de pura treta. Claro que não gosto de, enquanto faço amor, dissertar sobre engenharia financeira. Mas como não fumo, até que pode ser um tema interessante nos intervalos.

Saboreamos as bebidas que não ultrapassou, nem no meu nem no dela, um dedo de altura, falamos de futilidades, brincamos com as pedras de gelo nos copos e fizemos silêncio durante breves segundos, olhando um para o outro. Levantou-se, estendeu-me uma mão num leve e suave convite e sorriu. De mãos dadas, acompanhei-a até ao quarto. Caímos nos braços um do outro e nossas bocas se uniram. Gosto de luta, mas acabo sempre por ser vencido, a sua língua conquistou espaço e, irrequieta, se divertiu. As mãos percorriam os corpos, não sabendo exactamente à procura de quê.

Afastou-se um pouco, o suficiente para que eu, apenas com um simples movimento de olhos pudesse admirar todo o seu corpo. Com a ponta dos dedos afastou as alças do vestido e, com um leve, quase imperceptível movimento de ancas, fez com que o vestido descesse suavemente, afagamento o seu corpo, até ficar a seus pés. E ficou. Ali, Parada. Sorrindo apenas. Oferecendo a meus olhos toda a beleza do seu corpo. Os bicos dos seios fitavam-me de frente, desafiadores. Depositei em cada um deles, um beijo. Acho que foi isso que fiz, mas não posso jurar. Moveu-se lentamente e deitou-se na cama. Pura poesia em movimento.

Sei que nos filmes, o herói fica nu em dois segundos. Eu levei um tempo dos infernos para arrancar a porcaria da roupa. (Continua. Está quase.)

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Fim de semana inesquecivel (3)

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Abriu porta dos bancos traseiros do seu Peugeot 407, sentou-se numa ponta, tirou os sapatos e colocou as pernas em cima do banco. Dei a volta e abri a outra porta. Olhei em volta numa tentativa um tanto desesperada, de encontrar uma posição relativamente cómoda. Logo conclui que, na vida nada é fácil e tudo tem que ter um preço. Lá consegui encontrar uma forma de executar a árdua tarefa de massajar os pés da coitada, à custa, diga-se, de uma boa dose de dores nos rins. Creme, massagem e a visão de umas coxas perfeitas e, lá no fundo, um triângulo branco, ligeiramente transparente.

As massagens, para mim, são sempre um campo por descobrir. Quero dizer que não sou nenhum perito, mas tenho sempre uma tremenda disposição para aprender. Ai, esta minha fome de sabedoria! Por vezes faço descobertas sensacionais, outras cedo à tentação de explorar novos horizontes e, de quando em vez, tenho a sorte de encontrar alguém disposta a ensinar. Nestas circunstâncias sou sempre um aluno atento e esforçado. Só que, nessas ocasiões, tenho uma posição mais cómoda. Confesso que não tenho memória de alguma vez ter ficado com uma terrível dor nos rins. Num dado momento, a dor era tão aguda que a minha vista ficava turva e eu não conseguia ver com nitidez até lá ao fim. Paciência, não se pode ter tudo.

Mas que raiva! Como é mesmo nome dela? Deslocou aquelas duas belezas para baixo, calçou os sapatos e saíu do carro. Pelo meu lado, endireitei-me e, disfarçadamente, esfreguei os rins. Reconheço que não sou bom de rins, mas sempre me desenrasco no jogo de cintura.

Como tudo aquilo me pareceu um tanto estranho e com uma boa dose de exotismo, desde o primeiro sorriso até àquele momento, não consegui projectar para um futuro imediato o que poderia vir a acontecer. Desde o tempo em que dançar era um exercício executado por dois corpos bem juntinhos que sei que a melhor coisa a fazer é seguir o compasso da música, não pisar os calos do parceiro e, se possível, dar ligeiros apertões, de modo disfarçado. Pois que assim seja. Dei a volta ao carro e fiquei junto dela.

- Será que nos podemos encontrar de novo? – Perguntou.

Perguntar ao esfomeado se quer comer… Só uma resposta possível, onde, como, quando, pode ser já? Claro que não foi nada disso que disse. Afinal, que diabo, sou um cavalheiro.

- Terei nisso o maior prazer. – Respondi com o melhor e mais fascinante dos meus sorrisos.

- Tenho de o compensar por todo este trabalho. Será que posso convidá-lo para jantar?

Naquele momento, a uma velocidade superior à da luz, passou pela minha mente mais de um milhão de formas de me compensar. No final, fiquei-me por umas duas ou três. Também não convém ser exagerado.

- Mas claro que sim. – Respondi. – Qual é o melhor dia para si? Hoje é quarta, que tal na sexta?

- Para mim está óptimo. Telefona-me, marcamos a hora e espero por si.

- Combinado. Na sexta telefono-lhe. Mas posso fazer mais logo, só para saber como estão os seus pés. – Quem não arrisca não petisca. Aquiesceu de imediato e eu fiquei a vê-la a ir-se embora. Na minha mão um pequeno papel com um número de telemóvel.

Ainda fiquei ali por mais uns instantes parado, sem saber se havia de voltar para a Fnac ou se me metia no carro e ía embora. Resolvi pela segunda opção. Duvido que conseguisse a necessária concentração para prosseguir a leitura. Só que, por uma questão de respeito pelo trabalho de cada um, decidi num ápice, comprar o livro do Paul Auster. Não seria decente começar a ler um livro e não ir até ao fim. Sou muito rigoroso no que se refere a livros. Ora, uma pessoa pode ter as suas manias. Eu cá tenho as minhas.

Ao serão peguei no papel e comecei a marcar o número, mas parei a meio. Não estaria a ser precipitado? Mas ela aceitou a ideia de lhe telefonar mais tarde. Não queria transmitir uma ideia de que estava ansioso por voltar a ouvir a sua voz. Esta minha impaciência, um dia, ainda me causa dissabores. Que se lixe. Completei a marcação e aguardei até ser atendido.

Uns minutos de conversa sem grande sentido, uma ligeira referência aos pés e ao valor terapêutico do creme, um breve agradecimento à minha massagem e a promessa, que ambos sabíamos que nunca será cumprida, de ter mais cuidado na próxima vez que comprar sapatos. Culminou tudo isto na confirmação do encontro para sexta e uma pergunta da minha parte se poderia telefonar no dia seguinte. Mais uns quantos minutos, poucos, ocupados na troca de simpatias, sorrisos e piropos. O trivial.

Confesso que estou a sentir-me mal. Chegar a esta altura dos acontecimentos e continuar sem conseguir lembrar-me do nome dela é, no mínimo, confrangedor. E já perdi a conta aos inúmeros exercícios de mnemónica e nada. Já referi o sinal de nascença, em forma de losango, dez centímetros e quarenta e quatro milímetros exactos, abaixo do umbigo? Pois já. (Continua. É chato, mas tem de ser)

sábado, dezembro 03, 2005

Fim de semana inesquecivel (2)

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- Aprecia arte gótica? – Perguntei, apontando para o livro.

- Isto? Não. Tem é umas fotografias espectaculares. Foi apenas um pretexto para me sentar um pouco. São estes sapatos novos que me dão cabo dos pés. – Disse, com um sorriso de parar o trânsito.

Naquele momento o Paul Auster foi dar uma curva, mais o seu Inventar a Solidão, com a secreta promessa de, mais tarde, comprar o livro. O que acabei por fazer. É que eu jamais fico indiferente a uma mulher dorida.

- Conheço um creme, produto natural, que resolve isso em segundos.

- Palavra? Que nome tem esse creme?

- Sou péssimo para decorar nomes de cremes, mas sei que é um frasco com um rótulo verde e azul com plantas. Logo que o veja o identifico. Se o desejar, podemos ir à loja dos produtos naturais e lhe indicarei qual. – Custa alguma coisa ser simpático? Acho que não.

- Faz isso por mim? – Que raio de pergunta. Fazia isso e muito mais. Tudo o que ela pedisse, desejasse ou sonhasse.

Levantamo-nos e dirigimo-nos para a saída. Pensei que não tinha comprado o livro que pretendia, naquele momento. Esperava que o creme compensasse a perda.

Achei por bem fazer as apresentações. Disse-lhe o meu nome e ela o dela. Chiça, acho que agora tinha mesmo a obrigação de me lembrar!

Descemos pelas escadas rolantes e pouco depois entramos na loja de produtos naturais. Dirigi-me de imediato ao local dos cremes e encontrei o que procurava. Sei o nome mas não o vou dizer. É que nem sempre resulta e eu não quero responsabilidades.

- Aqui tem. Mas olhe que a aplicação deve ser acompanhada por uma boa massagem. – Observei, sem segundas intenções, claro.

- Aposto que a sabe aplicar. – Disse, sorrindo com alguma malícia.

- Em boa verdade, considero-me um perito. – Ora, uma mentirinha sem importância. Haverá alguém que não saiba dar uma massagem nos pés? Duvido.

- E agora? Tenho o creme, mas continuo com as dores nos pés. – Olhou para o frasco e depois para mim.

Alguém me pode explicar, como é que uma pessoa se deve comportar numa circunstância destas? Eu não conheço a brasa de lado nenhum, não tenho exactamente uma figura em que as mulheres caiem babadas aos meus pés só de me verem, de Adónis não tenho nada. A maioria das vezes fico invisível no meio da multidão. Aspecto de rico também não. O facto de lhe ter oferecido o creme, nem chegou a dez euros, não prova nada. Que eu saiba a Fnac não é um habitual local de engate. O que é que um pobre diabo como eu podia dizer numa situação daquelas. Acho que só uma coisa: na minha ou na tua. Lembrei-me que a mulher a dias não ía ao meu apartamento há mais de quinze dias, um filho doente, acho. Não é difícil de adivinhar o estado em que se encontrava. Se bem me recordo, não havia lugar nenhum onde não houvesse uma peça de roupa minha. Não, o meu apartamento, não era, de facto, o melhor local. Por outro lado, um conhecimento de poucos minutos, não oferecia suficiente confiança para convidar um desconhecido para sua casa. Depois, eu não sou assim tão sortudo que vá para a cama com uma mulher com tudo em cima, sem indícios de silicone – mais tarde verifiquei a veracidade desta afirmação – nem nada para por defeitos, minutos depois de a conhecer. A coisa comigo funciona com muito mais dificuldade e trabalho e nem sempre é coroada de êxito. Não que isso me chateie de sobremaneira, na verdade prefiro que o meu lado romântico prevaleça. Um jantar à luz de velas, um passeio ao entardecer, horas escorreitas a conversar sobre a importância das futilidades, um beijo fugidio, uma tímida carícia. Enfim, coisas do meu intimo.

- Se lhe dói assim tanto, posso dar-lhe uma sugestão. – Disse, com toda a seriedade estampada em meu rosto.

- Diga. Sou toda ouvidos. – E ficou na expectativa.

- Aplicar-lhe o creme aqui nos corredores, não seria o melhor espectáculo. Se concordar podemos ir ao parque de estacionamento, senta-se no meu carro e eu faço o tratamento. O que acha? – Ao ver o meu carro, ía logo descobrir que era um teso.

- Aceito. Mas pode ser no meu carro. Eu tenho mesmo de ir embora.

Nada mais me restava senão aceitar. Segui-a até ao estacionamento. Num dado momento, ela colocou-se dois passos à minha frente à minha frente. Saia branca, justa, pois claro. Nada de fio dental. Ergui os olhos aos deuses, profundamente agradecido. Não gosto de fio dental. Prefiro a descoberta ao descoberto. E depois aquilo não dá trabalho nenhum, não oferece resistência, não deixa adivinhar nada, não permite o desvio. O deslocar. Brancas, num V perfeito, indiscutível, marca bem visível. Não tenho nenhum fetiche com cuecas, mas sou de opinião que é a cor que melhor se molda ao corpo de uma mulher. Acho o preto horroroso e o vermelho de muito mau gosto. Bem, também não sou contra a uma leve transparência. Aquelas tinham. Perfeitas, ondulantes, oferecidas. Antes que me desse alguma, apressei o passo e coloquei-me a seu lado. Dois ou três centímetros mais baixa. Mas será que aquela mulher não tinha defeitos? Começava a duvidar.

Bom, os dedos já começam a ficar um pouco doridos pelo rodopiar da caneta. É que, além de continuar a não me recordar do nome dela, não sei como hei-de contar esta cena da massagem dos pés, no carro. Mas já que cheguei até aqui… (Continua)

terça-feira, novembro 29, 2005

Fim de semana Inesquecível

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Como era mesmo o nome dela? Boca de lábios carnudos, olhos azuis brilhantes, seios altivos, desafiadores, auréola rosada e bicos quase sempre erectos, e não estava com frio nem excitada, não naquele momento, coxas torneadas, cu de nádegas cheias, levantadas e redondas e o mais perfeito triângulo de pelos púbicos cuidadosamente aparados, numa simetria de perfeição, que tive o prazer de contemplar. Demasiado, na minha opinião, pois de vez em quando picava. Mas como era mesmo o nome dela? Tinha um sinal, que parecia um losango, visto do lado da coxa esquerda e um rectângulo quem mira do lado direito, três centímetros abaixo do umbigo. Rigorosamente. Tive o cuidado de medir. Com uma régua. Esta minha mania da precisão!

Foi numa tarde miraculosamente livre e eu vagabundeava pelos corredores dos meus vícios e prazeres, música e livros, mais estes últimos, no meu local de tertúlia solitária, a Fnac. Perco-me no meio dos vídeos, deixando que um qualquer titulo sorria para mim o suficiente para o retirar da prateleira. Daquela vez todos se mostraram sisudos. Paciência, por lá continuaram. Na música o espaço é mais limitado, como limitadas são as minhas preferências. Música que não me dê cabo dos tímpanos, que me obrigue a fechar os olhos e sonhar. É só isso que peço. Melodia. Não sou, nem quero ser, nenhum erudito na música. Se me proporcionar momentos de prazer, já me dou por satisfeito. Desta vez não encontrei nenhum disco novo da Bethânea, o último da Calcanhoto já o tinha e o Roberto, o meu Roberto Carlos só edita um por ano. Razão mais do que suficiente para mergulhar no meu mundo; os livros.

Vagueava entre todos aqueles títulos à procura de um que fosse minha companhia por umas horas. Pretendia um que não tivesse muitas páginas pois gostaria de chegar ao fim. Sem saber exactamente porquê e confesso que, no momento nem foi motivo de preocupação, apanhei um livro. Inventar a Solidão era o título e o seu autor Paul Auster, um ilustre desconhecido para mim na altura. Hoje faz parte da minha biblioteca. Mas se na música e nos filmes não sou lá grande aventureiro, nos livros e nas mulheres não hesito um segundo para me lançar no desconhecido e na aventura. E que prazeres intensos foram já descobertos!

Procurei o conforto do assento, suspirei de puro prazer um tanto lânguido, confesso, e enfiei a cabeça na primeira página. Ah, esqueci de dizer que isto se passou vai para mais de sete meses. Há que colocar as coisas no seu tempo certo.

Apesar de não ser uma escrita que nos agarra logo nos primeiros parágrafos e nos obriga a concentrar a nossa atenção sôfrega em cada linha, prendeu o meu desejo de leitura. Ia na página dezassete a iniciar o segundo parágrafo que começava assim, isto se a memória não me falha: “Um número de telefone rabiscado à pressa nas costas de um cartão comercial…”, quando levantei os olhos e a vi. Sentada quase à minha frente, pernas cruzadas, saia para além do meio das coxas, blusa rosa velho de generoso decote. Folheava, um tanto distraída, um livro de arte gótica. Voltei ao livro, à página dezassete e ao segundo parágrafo. Repeti a leitura da primeira frase e não passei da quarta palavra. Impossível ignorar o livro de arte gótica, ali mesmo, à minha frente.

Descruzou as pernas e as minhas esperanças se defraudaram pois usava cuecas. Só mesmo nos filmes. Como a olhava, possivelmente com uma cara de parvo, coisa que faço com muita facilidade, achou-se na obrigação de sorrir. E porque não? Estávamos num local público, cujos frequentadores eram seleccionados pela lei da ignorância. No “Tavares” é a lei do dinheiro que selecciona os clientes. Volteei o olhar pela floresta de livros e títulos, sem outro propósito que não fosse o disfarçar, porque para onde eu queria mesmo olhar era para as coxas e para o rego das mamas, que o decote tão generosamente deixava ver. Que diabo, um homem por muito que goste de livros também não é de ferro! Por instantes, menos de um segundo, fixei a capa de um livro de Marcel Proust. Mas não passou disso, pois logo regressei à razão do meu sobressalto. Como era mesmo o nome dela?

Voltou a sorrir-me e desta vez achou por bem dirigir-me a palavra. Fazer o quê, com o raio desta timidez! Não é que dure muito, mas no início é sempre assim. Depois acabo sempre de agradecer os cursos de oratória e retórica com um americano, que pouco falava português, no hotel Tivoli. Confesso que ainda hoje estou para entender como é que o tipo nos compreendia tão bem.

- Será que podemos estar aqui a ler livros? – Perguntou, inclinando-se para a frente. Um movimento natural ou propositado? Que se lixe! Eu cá gostei. Mais um pouco e conseguia ver-lhe o umbigo pelo decote. Dentes perfeitos. Bolas, nem tudo é pecaminoso!

- Este espaço é para isso mesmo. – Respondi. – Claro que acabamos sempre por comprar qualquer coisa. – Conclui, tentando explicar. Afinal aquilo não é nenhuma biblioteca pública.

- Venho aqui muitas vezes, mas é a primeira vez que me atrevo a sentar. Sorriu, endireitou o busto e trocou a posição das pernas. Desta vez não segui o movimento. Porra, quem me manda a mim ser educado?

Pensei responder-lhe que tinha escolhido o melhor momento. Claro que não fiz.

- Eu sempre me sento aqui um pouco. Quando tenho algum tempo livre, o que não acontece com muita frequência.

Mas que merda de presunção a minha. Senti-me um idiota chapado. Emprestei uma importância desmedida a uma coisa tão simples como sentar-me na Fnac e roubar uma ou duas horas de leitura. Onde tinha eu a cabeça? Repousando nas mamas ou entre as coxas dela? Bolas, não era isto que eu queria dizer. Mas que foi o que pensei no momento, lá isso foi. (Continua)

domingo, novembro 27, 2005

Em demanda

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Eu sei muito bem que tu sabes, mais do que adivinhas, que eu morro de raiva de ti. Desse teu jeito um tanto ridículo de fingir que não me queres, que não me desejas. Que não me olhas de soslaio quando nos cruzamos e o fazes todo o dia, a cada instante e, quando não estou, é esse o teu desejo. Que me respiras a toda a hora, sempre que cerras os olhos e o teu pensamento voa até mim pela madrugada dentro. Sabes o que me irrita? Essa tua atitude de construíres o engano, em mim, em ti e em todo o mundo. Tu finges e eu finjo que acredito e o tempo vai-se escoando por entre os nossos dedos. Eu sei, tu sabes e, na verdade, toda a gente sabe, mas nós teimamos em ignorar.

Não vou mentir, tu sabes que sou assim, porque isso digo que detesto essa tua mania de me evitar por serem fracas as forças de me resistir. Na verdade não é isso que desejo. Apenas anseio que termine a tua própria resistência e partamos em demanda do espaço que seja nosso. Essa tua constante dissimulação faz fraquejar a minha vontade e eu fico, sentado naquele penedo olhando o mar, única companhia da minha solidão. E desta forma tu escapas do meu pensamento e conquistas o meu desafecto. Morro de raiva de ti, do que sinto e não devia, do que sentes e não mereço. E toda esta vontade de afagar o teu rosto com a ponta dos meus dedos, de beijar o teu pescoço, de deixar a marca, a nossa marca. Aquela que só nós identificamos.

Gostaria de te arrancar desse teu esconderijo e voltar a afogar-me nesse teu cheiro e assistir ao lento progredir da química perfeita que os nossos cheiros possuem, deixar que a metamorfose se conclua. Ainda recordo aquele instante em que descobrimos a forma como eles se combinam para formar o perfume que sempre acaba por nos inebriar. Lembro que disseste entre risos cristalinos que, se pudéssemos prender num frasco, ele nos renderia uma fortuna. E eu respondi que ninguém vende a sua alma. Tu retorquiste com um beijo, cujo sabor ainda o mantenho.

E é aqui que eu sinto a raiva a crescer de não conseguir descobrir a fórmula, decifrar a equação e não encontrar outro cheiro que em mim seja o adequado. Inadequado é odiar o teu atraso, a tua distância, o teu propositado deixar andar. Um dia, talvez, quem sabe, quando tiver a certeza que não fico presa, que não te aprisiono, dizes. Ouço e fico no meu silêncio. A ele me abraço e deixo que me transporte para outros espaços, para outros tempos. Tempos que o tempo esqueceu. Mas tu não desistes e continuas não desejar construir um passado que ainda não vivemos.

Pensas que não sei, que tudo fazes para manter essa imagem de quem nada precisa, muito menos de mim, mas no fundo, os teus pensamentos são povoados com a minha presença e, apesar da distância, respiras o mesmo ar que eu. E é nesses instantes que descobres, mas não reconheces, que não sabes mais viver sem mim. Eu sei, tu sabes e, na verdade todo o mundo sabe. Para quê então as desculpas, mais para ti própria do que para mim, as fugas a uma realidade que já nos absorveu? Sabes que começo a ter medo desse teu medo? Essa é a razão porque o odeio, mais o meu do que o teu e nem me perguntes porquê. Não vais perguntar porque nessas tuas madrugadas de silêncios encontras sempre todas as respostas.

Detesto escrever em vão e sei que vais fingir que não leste, mesmo depois de ter imprimido e lido esta carta dezenas de vezes, até decorares cada palavra, saberes de cor a posição de cada vírgula. Mas fazes questão, com um ar apressado, que não leste, falta de tempo, justificas, não recebeste, explicas, atirando para outros uma responsabilidade inexistente.

Abomino essa tua maneira de fingir desfazer os meus sentidos, de desprezar as minhas coisas, as mais simples, aquelas que construí e todas as outras que sempre sonhei construir. Grito, de calças arregaçadas, pés descalços, no meio das ondas que se espraiam na areia. Falo em silêncio, olhando para o horizonte em todos os fins de tarde. Escrevo palavras que, apesar de afundado numa inconsciência, a minha consciência vai ditando e a caneta desliza pelo papel, falhando por vezes a tinta, o que me faz zangar. Por fim o nada e o nunca se conjugam e eu, exausto, deixo-me cair na cama onde sei que não vou dormir.

Confirmo na solidão da minha cama que és o pior pedaço de mim e detesto tanto carecer do teu sabor, da suavidade da tua pele, do estremecer do teu corpo, dos teus gemidos incontidos e sinto raiva desta minha tanta vontade de te ter. De ceder ao que o meu corpo suplica, ao que a minha alma implora. Todo este meu desejo de ultrapassar os limites, esta necessidade de sentir o teu sabor, esta louca vontade de te ter e toda a raiva em crescendo de ceder toda a vez que o teu corpo pede, a tua alma implora e sem nunca nada me dizeres. Tu sabes o quanto te preciso de te ler.

Recorda aquela noite quando, de cabeças encostadas, os braços apertando os nossos corpos e deslizamos pela pista de dança ao ritmo de uma quase valsa. O cantor não sabia, mas naquele instante, ao cantar o La Bohéme, do Aznavour, fez-nos voar até à nuvem mais próxima. E ficamos nos braços um do outro muito depois dos últimos acordes terem desaparecido no ar.

E são esses acordes quando ultrapasso os limites no teu colo, quando te sinto inteira em meus braços, quando acaricio os teus seios, quando beijo tua boca e quando todas as loucuras perdem sentido. Morro de raiva de te amar tanto. E é esta estúpida paixão que me faz querer-te cada segundo, completa, e procuro, em desespero, esconder em teu corpo toda a denúncia de um amor que ultrapassa as nossas vontades. A tua língua, essa do coração, que eu sempre tento aprisionar.

Sei que, num qualquer instante vou ceder à tentação de te matar de amor, de te violentar de prazer e deixar que a fogueira aumente.

E se queimar e a gente morrer.
E se acabar, que seja de vez.
Porque se não for inteiro, pela metade eu não aceito.
Eu te amo e te odeio.

Esta foi a carta que escrevi, que não enviei, que desconheces, pois não é mais do que uma carta perdida.

domingo, novembro 20, 2005

Noite de Chuva

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Podia dizer, filosofando, que perdi no tempo e no espaço, a recordação do gosto que tinha beijar alguém pela primeira vez, sem saber o que vai acontecer no dia seguinte, se tem mesmo que acontecer alguma coisa, mas com aquela sensação que não se vai encontrar no segundo encontro. Mas não digo, porque o primeiro beijo é algo que ultrapassa todos os nossos sentidos, que suplanta a nossa imaginação e que sempre nos faz reviver anos nunca vividos, sensações jamais sentidas. É como se, de repente, todas as nossas incertezas da juventude ganhassem de novo forma e nos dominasse, todas aquelas tremuras.

Perdera já nos confins da memória há quanto eu não sentia aquela interior timidez de encostar meus lábios de olhos fechados aos que, com igual receio, se aproximavam. O leve roçar e o ligeiro entreabrir e depois aquela vontade de me abandonar no colo de alguém. E permitir que viessem todas as palavras e sentimentos num correr suave, sem a preocupação com o que se vai pensar. Tinha mesmo esquecido como era delicioso dividir tudo, absolutamente tudo o que se tem vontade, sem disso se tomar consciência. Como as águas do rio, ou as noites de chuva. Deixar que as palavras brotassem ao ritmo da melodia que nos embalava, com uma certa timidez, sim, até mesmo com receio, mas sem temor de as dizer num sussurro, enquanto as nossas faces de roçavam e as nossas bocas chegavam aos ouvidos, proferindo as coisas que desejávamos ouvir, mesmo a não proferindo, por não necessário.

Esqueci mesmo os pactos dos começos e das promessas implícitas de liberdade, aquela que nos prende e nos ajuda a construir os alicerces. Não lembrava mais da sensação de medo, quando tudo acontece depressa demais, ultrapassa o nosso raciocínio e que nos transforma em indefesos de nós próprios. Perdera no tempo a noção dos passos, cada um deles, das etapas cheias de desordens, quando o que se sente é maior e mais intenso do que o que se pensa e o que se quer. Há quanto tempo eu não me sentia assim, tanto que eu já pensara ter perdido esse tempo.

Depois de dinamitar todas as pontes que me levavam a lugares incertos, atravessar paisagens mortas onde a água deixara há muito de existir, parei junto ao precipício e, naquele instante, tomei a decisão de iniciar a descida, só para ter a possibilidade de experimentar o prazer da subida, devagar, com passos firmes, mas tranquilos e chegar à outra margem. Quem sabe se não terei uns braços à minha espera e um regaço para descansar.

Desconheço em absoluto quanto tempo é que o tempo dura, nem mesmo sei se amanhã sentiremos o mesmo, mas acho que isso nada importa, nada tem importância a não ser o agora, porque é agora que todas as certezas nos dominam e eu sinto a vontade de reviver coisas que estavam adormecidas.

A culpa de tudo foi a chuva, aquela noite de chuva, que nos obrigou a correr para aquele abrigo exíguo e os nossos corpos se encostaram. Apesar de nada dizermos, tivemos a certeza que cada gota de chuva deixava em nossos corpos marcas indeléveis e nos nossos sentimentos uma selva de possibilidades e sensações a explorar. E toda aquela vontade a crescer. A mesma que, a cada instante, está sempre a regressar e a dominar. E assim ai ficar que não caiba mais, até que baste ou que nos obrigue a sair para a rua à procura de uma outra noite de chuva.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Blues

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Abandona toda essa vontade, por vezes um tanto dispersa, de entenderes o mundo e o desejo que se mantenha em linha recta.

O corpo, o teu, o meu, até ao instante que não seja mais o meu ou o teu, o mesmo que teima em vergar numa desesperada tentativa de retorcer os poros, os mesmos que nossas línguas tantas vezes percorreram, os cantos que sempre tentamos percorrer com a lentidão de segundos parados, todo esse tanto que temos ou que desejamos.

Eleva a tua prece e desiste de uma vez do céu com poucas estrelas, do vestido cobiçado naquela montra, do carro cuja bateria resolveu deixar de cumprir o seu dever. Daquele pedaço de cabelo que veio numa carta sem remetente, do perfume encontrado na camisa e que ficou enjaulado nos teus pensamentos. Não é meu, não é teu, na verdade não é de ninguém, nem um sonho e muito menos um pesadelo, tudo se foi no comboio das dez

Com as tuas mãos de guerreira, espada em riste, corta o meu peito, fere os meus sentidos, trespassa o que é teu e depois, feita feiticeira, num toque de magia, que eu seja a perfeição dos teus desejos.

Se tal for teu desejo, mata-me com as tuas palavras, atinge meu peito com a tua indiferença, aumenta a minha surdez com os teus silêncios, deixa que a minha queda se processe no abismo mais fundo que a tua imaginação possa criar.

Permite que tudo se erga do submundo como força fálica pronta a temperar a dualidade, deixa que os teus passos te conduza para um espaço que não seja apenas solidão e intua como o feminino exige e presenteia na presteza e na simplicidade das coisas. Afinal somos os poucos que sobraram, as migalhas de um chão transformado em palco de cópulas desejadas e no ar aquela indolência dos blues que tanto apreciamos.

Se eu gritar promete que me calas, se eu virar pó promete que me espalhas, se eu virar promete que invertes. Estende, multiplica, soma e depois atira tudo aos ares e se souberes, reza para que nos juntemos completos numa incompletude e inquietude de alma gigante, a mesma que nunca conseguimos aprender a domar.

Tudo que é demais assusta e o medo nos arremata. Se eu quebrar, tu me colas?

domingo, novembro 13, 2005

Diário de um alma errante (III)

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Noite 14.630


Depois de uns quantos dias de ausência, os quais me recuso quantificar ou saber das razões, eis que regressas ao fim da tarde, o dia já fora e a noite apossara-se dos nossos sentidos. Noto cansaço no teu rosto e vejo um sorriso nos lábios. Chegaste até mim, apertaste-me nos teus braços, procuraste os meus lábios e prendeste a minha língua. Arrancaste a minha roupa e ali, no chão, fizemos amor. Sem uma palavra, sem uma explicação. Um sorriso nos lábios e um pedido de perdão no olhar.

Ainda ofegantes, acendemos um cigarro. Um ritual repetido, mas cada vez mais espaçado. Ficaste duas noites e depois partiste. Um até amanhã, um beijo e um tímido sorriso. E mais uns quantos dias sem saber de ti.

Não sei quanto tempo mais vou escrever neste diário, se alguma vez chegará ao fim ou simplesmente aguardo o rigor do Inverno, acendo a lareira, deixo crescer as chamas e atiro-o para o meio e fico sentada no chão a vê-lo arder, até que nada mais reste a não ser cinzas. Imagino o prazer que vou sentir ou a dor que vou sofrer.

Desconheço porque caminhos os teus passos deambulam, que outros braços te acolhem, que lençóis cobrem a tua nudez, mas uma coisa eu sei, não desejo receber toda essa violência deliberada, toda essa ausência premeditada. É urgente que atordoes os meus ouvidos com o grito definitivo para que eu, por fim, possa dançar sozinha, volteando por entre os móveis silenciosos, as notas tristes do meu eterno vinil que, teimosamente, insisto em conservar e que, de uma forma constante repete a mesma melodia de amor monológico, aquele amor monocromático. E negro, como aquele meu vestido de baile, aquele que vesti numa noite de luar e o usei na solidão da minha varanda porque, mais uma vez, não vieste. Foram outros os teus bailes dessa noite. Mas o negro profundo, esse ficou, o negro dos meus olhos.

Insisto em não desistir de mim mesma e os meus olhos de negro se transformaram em azuis e neles guardo todo o universo com os seus astros e estrelas que pode ser de uma luz fosca, até pode, possivelmente até anémica, mas uma certeza eu tenho, tu não podes ver o quanto eu posso ser iluminada a cada suave olhar esguio que me são oferecidos pelos sorrisos perdidos no ar. Tu me acusas de só oferecer sombras e disso me obrigas a acreditar, donde fujo e me refugio, agachada na muralha de carvão e cinzas, onde acendo o meu cigarro para que possas chegar até mim, um minúsculo ponto aceso e aguardo ouvir os teus passos. Em vão, eu sei, mas teimo.

Não pára nunca o vendaval feito furacão que rodopia nos meus ouvidos, até mesmo quando observo o sol, vermelho laranja, nascendo forte e brilhante no horizonte dos meus sentidos, através das vidraças da minha alma. Lá fora, por entre o casario, na busca de uma árvore, na poeira de uma estrada perdida no tempo, o mundo pode ser quente e aconchegante, pode até emoldurar o brilho dos meus olhos. Que não te vai ofuscar. O disco pode virar e a melodia se repetir ou o desafinado troar pelos ares. A palidez da minha pele ganhar os tons de uma rosa saudável, pétalas de uma verdadeira flor madura em primavera. Mas tu não vais estar presente.

Descobri algures, durante as minhas peregrinações pelos espaços que a tua ausência criou, um mar de cores misturadas numa paleta de um pintor enfeitiçado e onde eu posso me atirar, banhar o meu corpo, lavar o meu espírito um tanto cansado, aumentar o meu desejo de beijar os teus lábios, prendendo a tua boca como se estivesse mordendo uma fruta verde, vencer a tua resistência, ceder à tua insistência, sentir a pressão dos teus dentes e permitir que as nossas línguas sejam o alimento que mais aguça do que arremata a nossa fome.

Entrei na madrugada e o sono continua a vadiar algures por paragens distantes. Resta-me o silêncio desta casa, o vazio da tua ausência e as folhas deste caderno a serem manchadas com pontos e vírgulas.

Tu sabes, ambos o sabemos, que quero ficar contigo e não desejo que o nosso amor, se ele de facto existe, não continue a pairar no ar da incerteza. Tu sabes que eu sempre me resigno, acabo sempre por ceder aos teus encantos, louca imprudência! O meu corpo vai ondulando ao som de uma melodia e desejo que me acompanhes nesta dança cadenciada, num voltear por este espaço exíguo que é o meu quarto, num bailado quase pecaminoso. Pelo seu som de deleite, quase pairo no ar e deixo de sentir o chão num estranho júbilo e, no final, entrego-me toda a esta alegria que chega a perturbar a minha mente, este prazer de mentira que eu própria construí. E vou a correr tentar apanhar os flocos de neve de um frio que tento inventar e os espalho no deserto do Saara. Pequenas pedrinhas geladas que se desfazem quando tocam o calor imenso da areia. As palavras que se misturam em pensamentos incongruentes.

Sinto o saltitar leve das patas de um pássaro tocando, sem deixar marca, o meu coração duro, petrificado de dor e amargura. És culpado de uma culpa que jamais reconhecerás. Sei que, se um dia, por mero acaso, lesses estas páginas, não ias gostar e eu teria que ouvir as tuas zangas, as tuas frustrações e o teu esforço em renegar o sentimento de culpa. Se queres saber, pouco me importa, é assim que eu me sinto em mais uma madrugada. A ti, posso mentir, mas a mim, jamais o farei. Reconheço que, apesar de viveres de uma mentira, continuas a ser meu alimento e vicio e com firmeza me prendes com a mão, destróis a minha fortaleza em pedaços, roubas o meu escudo, trespassas os meus muros de enfado e humedeces o meu solo seco e perdido para qualquer semente. Mas eu continuo firme, resoluta e forte na minha debilidade.

Era meu desejo esquecer que toda esta solidão, nada mais é do que o preço a pagar por ser a outra. E essa sensação é mais forte, quando mergulho na banheira de água quente com leve espuma de sais perfumados. Quando acendo velas e fecho os olhos. Aí deixo que a quentura da água penetre na minha pele e as minhas mãos ganhem vida própria. Toco ao de leve os bicos dos seios, imaginando que são os teus lábios sôfregos e nesse instante sinto um ligeiro tremor no fundo da barriga e um calor que nada tem a ver com a temperatura da água. Resisto à tentação de baixar a mão, porque sei que isso só iria aumentar a minha solidão. Torna-la mais intensa, mais real. Mas o desejo é mais forte e deixo que tudo siga o seu curso. Uns gemidos perdidos no silêncio da casa, uns momentos de prazer solitário e uma vontade enorme de chorar.

Põe vezes recordo os meus tempos de criança, quando a mãe se convencia que o ballet deveria ser a arte que me envolveria no futuro e insistia nas aulas três vezes por semana. Não sei se acreditava mesmo ser o bailado uma carreira ou porque sentia prazer em dizer às vizinhas e amigas que a filha andava no ballet. Não durou a aventura, os meus pés eram de chumbo e o meu corpo desengonçado. Talvez por isso, hoje, apesar de me sentir um estado de graça não consigo executar esses passos de ballet delicados que a melodia interior me obriga a deslizar. É demasiada suavidade que contraria todo o meu jeito de sentir que neste momento me domina.

Tem momentos que não sei se falo contigo ou se me derramo na primeira pessoa nestas folhas de papel. Não que isso tenha importância, não procuro identificação e muito menos a solução de uma equação que não criei nem desenvolvi. Apenas sou e o simples ser é já para mim importante. Apesar de não passar de um desejo, aprecio a suavidade dos meus pensamentos, é como se fosse veludo roçando levemente a minha pele. Quero ser firme, rir ao perder a conta das estrelas do céu, gozar com tontices sem sentido, antes que seja obrigada a descer e tocar novamente no chão, sentir-me rija e presa ao que é meu, até mesmo ao que é da minha natureza mórbida. Aguardo o aviso de alguém de que estou a ultrapassar as fronteiras da mediocridade do meu viver. Algum anjo por aí perdido ainda esbarra comigo quando flutuo numa nuvem branca que, contrariando as ordens, por raiva, por despeito, ou sei lá porquê, tenta extirpar-me as asas alvas, mansas, ligeiramente desfeitas pelos tropeções e me tire esse pedaço de céu que eu bem sei que não me pertence. Demoro a descobrir que penetro em território perigoso, como perigosa é a minha alegria. A raiva surda cresce e eu sinto vontade de apagar o cigarro bem no meio do teu sorriso.

Ainda sinto no meu corpo o perfume dos sais de banho e isso me inebria em pouco. Sem muito saber porquê, sorrio enquanto olho as letras que tento desenhar com perfeição, sentindo cada movimento como se estivesse a fazer amor. E este é o momento em que recordo que às tu me vestes e cobres as minhas vergonhas. E eu só em ti posso aquecer-me, nessa tua pele quente mas com um coração tão frio. Tento ser dura, forte, mas no final acabo sempre a chorar. Confirmo que, no fim, sempre fico a perder. Porque raio hás-de ser tu mais esperto do que eu? Quando te sinto dentro de mim é como se toda a estrutura começasse a oscilar, a surgir rachas nos azulejos e o chão, esse, se abrindo em buracos sem fundo. É como me transformasses em solo erosivo. E depois vais para outras paragens, distribuindo sorrisos, falas, sentimentos. E eu fico aqui, até que a água da banheira esfrie e me faça tremer de frio,

sexta-feira, novembro 04, 2005

Sem Limites

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Quando achei que podia ter teus beijos,
Pelos prados a descoberto escapei
Para que a dor não extrapassasse
O limite que nos obriga a redimir formatos
Estereótipos desenhados
Num permanente sentir da paixão
Que brotou da inércia em que permanecia
As razões, essas, deixei que se escapassem
Corri noites com pés descalços
Em areias molhadas de praias desertas
Ansioso, desordenado, sequioso, faminto
Daquela maneira como me tocavas
Tão forte, tão intensa, tão intima
Mesmo quando era apenas a tua voz

Tu sabes, porque baixinho o confessava
Nunca te possuía sem antes te amar
Nos prados verdes, nas moitas escondidos
Nas folhas brancas espalhadas
E nos lençóis revirados
Como plumas ao vento
Num sussurro acordava-te
Ronronavas, estendias os braços e me recebias
Fechavas os braços e te abrias
Depois era o ressurgir de contos
Poemas de encantar
Melodias de enternecer
Depois era a entrega
Total, sem limites
Carícias envoltas em permanência
Preenchidas na comunhão de prazeres.
E, naqueles beijos
Abraços e carícias
Procuramos nos nossos corpos
Recantos escondidos, tão nossos conhecidos
E a cada instante, lento e demorado
Construímos, letra por letra, a futura poesia
Fizemos coro nos gemidos
Comungamos os prazeres
Misturamos o suor
E sentimos o gosto do envolvimento

Só tens que abrir a porta
Quando a campainha tocar

domingo, outubro 30, 2005

Sinto, mais do que sei

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Sinto, mais do que sei, que as formas do meu rosto já não são do teu agrado, o mesmo que adoravas, dizias, acariciar, por onde a tua língua percorria docemente com uma lentidão arrepiante. Tudo porque nele, agora, está o desenho irregular de uma cicatriz no local que adoravas morder enquanto eu, com movimentos muito lentos, como tu gostavas, devagar, muito devagar, dizias num sussurro, eu entrava e permanecia dentro de ti, ao mesmo tempo que eu sentia a doce dor dos teus dentes e o meu sexo em movimentos na procura de dar e receber prazer. Tu fechavas os olhos e te oferecias, desejosa, ansiosa.

Sinto, mais do que sei, que os meus ombros, os mesmos onde gostavas deitar a cabeça, dolente e cheia de abandono, deixaram de ser o local do teu fascínio. Perderam o espaço de um passado recheado de saudades de todas as coisas que preencheram as nossas vidas. Aquelas pequenas, insignificantes mas que nos faziam sorrir, nos excitavam e nos fazia cair em qualquer lugar fazendo amor desenfreado e louco. Os meus olhos perderam brilho e força, aquela força voraz quando percorria o teu corpo e beijava o teu sorriso, talvez porque a cobiça tenho desfocado a retina. Culpa minha ou simplesmente a procura de um inexistente mais além.

Se o meu comportamento no passado era mais agradável na tua forma de encarar uma realidade que nos ultrapassa, nesse caso, sinto, mais do que sei, que já não nos pertencemos mais. Culpa tua porque permitiste que a distância nos separasse. Dizes que as saudades que sentes do tempo em que usava o cabelo comprido, rebelde, que mais significava o desejo de uma imagem da alma de artista, que nunca fui nem nunca serei. Olhas com desagrado a minha nuca agora a descoberto. Posso parecer duro, quem sabe com laivos de paranóia, só que, assim, fico com a sensação, que não vais aproximar-te demasiado de mim para me apunhalar pelas costas. Ou talvez não, exista apenas o desejo de apagar em definitivo a imagem que deixou de pertencer à moldura que decorava o colo dos teus desejos.

Sinto, mais do que sei, que te incomoda falar do passado. Tudo bem, brinquemos então com ele e se a palavra passado te afecta assim tanto, procuremos então um sinónimo que tenha o mesmo sabor, mas com uma imagem diferente. Afinal, é mais uma forma de nos enganarmos a nós próprios, como tantas vezes já o fizemos. Uma vez mais, que importância tem? Preferes o pretérito, imperfeito, talvez. Arcaico é possível que seja demasiado literário e que pouco ou nada signifique. Envelhecido. Porque não? Riscamos a palavra passado e usamos o envelhecido.

Ao escrever estas linhas, à minha frente um copo de sumo que por largos instantes esqueci de beber. Descobri que o grosso da fruta ficou concentrado em cima, mas sem se isolar. Bastou mexer e tudo se misturou de novo. Parvoíce minha, esquece a metáfora. Fuma lá esse teu último cigarro de haxixe, desta vez não partilhado e podes ir. Fecha a porta. Não gostaria que o frio gélido do Inverno entrasse.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Afinal, porque esperas…

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Vem de mansinho
Não tenhas pressa que o meu coração
Aguarda o instante em que despertes o meu sorriso
E aguce meus sentidos.
Agarre a vida como exemplo
Daquele amor por descobrir
Que é paixão e desejo em mistério,

Mesmo que não sejamos donos do tempo.
Deixa que abandone meu corpo em tuas mãos
Entre gemidos sufocados e arrepios
Dos teus lábios na minha pele ansiosa
Rogando por mais
Na espera do mais além

Deixa que eu abrace forte
E em teus braços alivie o fado
Nas margens do rio que nos revelam dor

E marque a equidistância até ao céu.
Esqueças o que procuras ao deitar teu corpo no meu
E nele encontre apenas amor demais.
Não interrogues o que nos acontece,
Não supliques pela realidade
Nas paredes de nossa fusão.
Vem sem culpa, sem medo do amanhã
Eu não vivo sem teu tremor,
Sem teu frémito e tua agonia
Sem teu desejo que prolifera no meu.

Sublime desfecho do sereno
Em meus olhos quando partes,
Com todas aquelas luzes
Que nos seguem sedentas

Ao retornar de mansinho para o nosso canto
Naquela cama redonda ou quadrada

Com uma vontade cada vez maior
De amar mais e sempre mais,
Sem culpas

Nem desculpas...
Vem de mansinho
Onde só cabemos os dois
Naquele tal cantinho

quarta-feira, outubro 19, 2005

Diário de uma alma errante (II)

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Noite 14.610

Podes acusar-me de tudo. Aceito. Sinto, mais do que sei, que muitas vezes, no silêncio do teu olhar, leio uma condenação de uma inexistente realidade. Mas, apesar de tudo eu respeito a tua carência, percorro o teu rosto com a ponta do dedo, gosto da barba mal feita, muito lento e muito ao de leve e com ele desenho galhos, desvios e ramificações, desenho círculos concêntricos e, finalmente, no canto da boca, quase a roçar os lábios, uma cruz. São gestos e movimentos, leves toques que a minha vontade ordena. Talvez signifique que eu sinta por ti algo um pouco parecido com o que chamam de amor. Ou então tudo não passa do sentir de uma pequena fúria que tenta quebrar a monotonia deste meu estático e cinza interior.

No espaço que mais uma vez nos recebeu, fito a luz fraca da vela que, num gesto inconsciente, resolvemos acender e no oferece o esboço dos nossos rostos. É nesse instante que venero a tua presença, que sorrio na penumbra e o meu coração rejubila por estares aqui mesmo apesar de eu não ter a certeza da tua presença. Gosto da penumbra, tu sabes, uma vez te confessei, com a cabeça repousada no teu regaço. Foi uma confissão a modos que despropositada. Mas tu sabes o quanto eu aprecio a penumbra, é aqui que me encontro, é aqui que encontro nós os dois. É quase como se estivesse de olhos semi-cerrados, um pé aqui e outro nos meus sonos mais soturnos, complexos. Com toda aquela complexidade de que, sem disso ter consciência, derramo nas páginas deste diário. Ora, também quem é que vai ler! Nem tu, que vasculhas todas as minhas gavetas à procura de sinais de traição, poderás encontrar este caderno de capas pretas. Apesar de estar a falar contigo nestas linhas, repara como ganhei coragem e o faço na primeira pessoa, jamais saberás o que digo, como, afinas, não sabes o que sinto por ti.

Na verdade só posso mesmo sentir a tua pele nesse teu universo opaco e oco, onde poucas vezes permites a entrada. Só posso vislumbrar as tuas células, essas que se misturam e se separam, como se fossem uma colcha de retalhos, tentando proteger-me do frio, esse frio que permanece, mesmo nas noites mais quentes, fina película de quentura. Mas tu, por gozo, por obrigação ou porque nada mais tens que fazer, abrigas-me nos teus braços e me proteges deste meu Inverno perpétuo. Porque teimas em me escudar de um mundo que se despedaça e desaba nas minhas costas? Descansa, não precisas responder. Na verdade, nem perguntei.

As horas vão passando, o sono não vem, sinal que o tempo não pára. Aqui, neste silêncio, apenas o arranhar da caneta no papel, lá fora, a fruta apodrece, cai e se desfaz no chão duro e poeirento. Gente que passa e não olha. Os esfomeados estão em outro lugar. E esta incoerência que permanece. Mas os temas. Esses, não mudam. Sabes que nada imploro, mas agora peço que não te assustes com a minha franqueza, tenho medo, tu não sabes, nunca o confessei, mas tenho medo de te perder. E isto é apenas o que posso dizer perante a minha impotência. Procuro agarrar, com as forças de todos os meus sentires, as rédeas de cada sílaba que me escapa em cada respirar, destruir todas as palavras erradas, e tantas elas são, amarrar com fios de aço todas as minhas verdades que não disse e as mentiras que omiti, minhas misérias, minhas loucuras e toda esta imensa solidão que dói e que muitas vezes me atira para uns braços estranhos e uma cama desconhecida. Dou, mais do que procuro, prazeres de uns quantos instantes. Momento em que a solidão é mais suave e eu fecho os olhos neste meu engano.

Não tarda aí os primeiros raiares do dia e o sono, esse, viaja por lugares distantes. Que seja. Sei que não mereces encontrar em mim mais temor, desejos de terra firme e a segurança de uma árvore milenar e nunca uma jangada perdida em mares de horizontes desconhecidos. Sei que tu sentes a minha alegria nervosa quando te aproximas de mim, quando me quedo nos teus braços. Deixo que entres no meu barco, pegues nos remos e marques o rumo. De olhos fechados deixo-me embalar nas tuas vontades que, em desespero, procuro que sejam também as minhas. Estremeço quando acaricias os meus seios, descoberto que foi o meu segredo, e em teus braços sigo viagem, com destino a um porto que nunca encontro, Não, não por culpa tua. Traumas de um passado que tento olvidar. Mas esquece! Deixa que meus braços apertem o teu corpo, arranhe as tuas costas, e receba em mim o explodir de uma nostalgia. É o mar se apossando da minha vontade num esforço de me distrair de mim, numa tentativa, mais uma, de encontrar a ponta da corda para me prender aqui, na ancorada e, assim, de me proteger de mim.

As ondas que levam o nosso barco exigem a paga da dor e para aportar a um porto seguro custa essa dor pequena e longa que aniquila o coração, que o estrangula. Estupro as minhas linhas, violento meu corpo, atormento minha mente. Em todo este silêncio, ouve o meu grito. Quero mais do que tu me podes dar, mas que feliz fico, com o pouco que me ofereces. Perdoa o desconexo das palavras e o complexo das frases, mas é assim que estas páginas do diário serão escritas e nada farei de diferente.

Sou a droga e o vício na minha própria droga. Corrompo meu sangue, destruo a minha mente, nado furiosamente contra a corrente, fico cega com a com a pressão e me emociono com toda essa fragilidade. Deixa que as minhas lágrimas percorram os caminhos que sonhamos e me comova com a nossa carência, a tua porque gritas em silêncio, a minha que me refugio nos gritos. Esta nossa ausência que emoldura as paredes vazias que nos fecham e aprisionam. Desejava fugir de mim, queria fugir de ti.

Da outra sala ouço uma música de som bafiento, as minhas pálpebras pesam luto, lamentam o meu precoce velório. Que demora tanto, segundos transformados em séculos quando aguardamos em solidão. Sinto a vontade louca de te abraçar com uma força que não tenho, eu te amo, com um amor que eu nem sei se posso dar a alguém. Terei coragem e renúncia para tal? Ouve meu grito e fica comigo, segura o meu ramo de flores murchas, agarra as minhas mãos e se for essa a tua vontade, beija-me. Não me deixes escapar mais uma vez de ti. Mesmo que tenhas de me condenar.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Diário de uma alma errante

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Noite 14.601

Apesar de todo um passado de páginas escritas com raiva, num caderno de capas pretas e folhas com linhas, esquecendo muitas vezes de registar a data e o momento, traços de alma e sentidos que, quase sempre inconscientemente, desenham palavras em frases num desesperado esforço de se traduzirem. A despeito de tudo o que possui e que acaba sempre por deixar escapar por entre os dedos. De tudo o que tem vivido e do muito que desejou viver. Do balançar na ténue linha entre o certo que a sua consciência ordena e o errado que os outros declaram. Aquela vontade interior de afastar o seu próprio sofrer do sofrimento alheio, de criar um mundo que fosse só dela, impenetrável, longínquo. Era sua obrigação responsabilizar-se por todas as irresponsabilidades de loucuras cometidas e de muitas que a falta de tempo não deixou ainda cometer. Mas um dia ela as fará, disso tem a certeza. Talvez até num amanhã muito próximo. Se é sua a vontade de escrever todas as palavras com sangue, pois que assim seja, mas que seja apenas o dela.

As humilhações não se perseguem nem se conquistam, porque há sempre alguém a nos oferecer com um sorriso nos lábios. As frustrações, essas nos invadem, nos dominam e nos aniquilam. Depois vem o bálsamo numa garrafa. Enchemos o copo, bebemos, tossimos e fechamos os olhos e voltamos a encher o copo. Vezes e vezes até a garrafa ficar vazia e com ela o respeito próprio e com os outros. Uma questão de entorpecer os sentidos, vomitar nas noites de lua cheia, lavar as cuecas de renda compradas num momento de boas intenções e alguma esperança e correr pelos prados e inventar um deus. Num desespero sem causa roeu as unhas, esborratou a pintura dos olhos com traços negros disformes se espraiando pelo rosto e de nada adiantou o ter derramado lágrimas. No charco que encontrou no seu passeio errante, atirou pedras, nas flores que uma primavera tardia fez desabrochar cuspiu vergonhas, numa viela escura e deserta vomitou o jantar. Na sua imagem reflectida no espelho viu definido, de cores fora do arco-íris, o nojo de todos. Desejou parar de fumar enquanto acendia um novo cigarro com o outro, que esmagou no cinzeiro já cheio, Rezou uma oração não decorada para que lhe fosse concedida a dádiva de existir sem se magoar e afastar de si a vontade de machucar outro qualquer. Num piscar de olhos, um ligeiro estremecer do corpo, descobriu que tinha desistido. Mais uma vez.

Confessou a si própria não ser muita dada a congeminações filosóficas, por desgosto seu, pois não apreciava muito a sua faceta demasiado pragmática. Sensível, romântica, dizia-se de si própria. Justificava assim os tropeções da vida. Deu-se a interrogar-se sobre se as delícias do prazer compensavam as dores do sofrimento, tenha ele a forma que tiver. Quadrado, redondo ou simplesmente obtuso. Sentia que o prazer tinha um preço alto, talvez demasiado, razão pela qual muita gente não se podia dar ao luxo de o possuir. Depois o prazer de um pode ser a dor de um outro. E, naquele instante, enquanto olhava o velho casario através da janela daquele terceiro andar, congeminava, num esvoaçar de pensamentos muito para além da sua vontade, se o prazer não seria dor. Sofrer é mais fluido do que o sangue nas veias.

Quando rodopiava a caneta entre os dedos pensava se seria a força de vontade ou a arrogância dos outros que a empurravam para se desfazer de tanta prolixidade, daquele sentimento insano de se desfazer de si mesma. Possivelmente tarefa fácil e pouca diferença fazia. Sem se aperceber a caneta deslizava com algum frenesim pelas linhas das folhas do caderno de capas pretas, não fosse alguma palavra lhe escapar do pensamento e tudo perder o sentido.

Por momentos pensou desistir, rasgar as folhas, queimar o caderno, esquecer o diário, secar as lágrimas, apagar o pensamento, tomar banho, mudar o penso no seu último dia de menstruação, cada vez mais espaçado, menopausa precoce, dissera o médico, mas descobriu que privar-se de tudo é uma tarefa árdua. E ficou-se.

Penteava com os dedos o cabelo da boneca. Tinha quase tantos anos como ela e era a única coisa que guardara da sua infância. O facto de a ter guardado todos aqueles anos, fora mais por um simples acidente do acaso, do que uma afeição especial. Foram muitas as vezes que se interrogara porque continuava a guardar aquela boneca. Fechou os olhos e, num repente, arrancou a cabeça da boneca. Achou estranho associar na sua mente o gozo intenso de viver perigosamente e o arrancar a cabeça de uma boneca de infância. Incontroláveis, as lágrimas corriam-lhe pelas faces. E chorou, sem culpa e sem pecado.

Olhou a sala, decorou os móveis, leu os títulos dos livros um pouco desarrumados na estante em frente, admirou a reprodução de um quadro de Kandinsky, oferecido já não se recorda por quem e observou o reflexo da sua imagem no vidro da janela. Com gestos lentos despiu-se de todo e qualquer pudor. Nua, percorreu o seu corpo com as mãos. Há quanto tempo o não sentia? Esquecera por completo. Recentes, outras mãos o percorreram, um pouco frias, apressadas, distantes. Assim, nua de preconceitos, despida de sentimentos, saiu pelas ruas da cidade cujo nome se esforçara a atirar para o olvido. Partiu garrafas vazias e as mãos ficaram cobertas de sangue. Levantou em riste atacando um inimigo imaginário. Desferiu golpes para a esquerda e para a direita. Sentiu dentro de si o gozo, de novo, de viver perigosamente. Semeou misérias e pesares, colheu silêncios e raivas. Foi perseguida e gritou. Foi algemada e chorou. Foi enjaulada e cerrou os olhos. Os animais, os génios e os lúcidos sempre terminam presos em alguma masmorra. Uma prisão de grades interiores.

Porque se achou merecedora, ofereceu a si própria uma réstia de inocência e permitiu que se alastrasse pelo corpo, mas descobriu que era mais uma luz perigosa que mais assombra do que ilumina. Ao alcance dos seus braços, um amor numa outra paragem, uma promessa, um desejo, mas muito principalmente uma esperança. Mas um dia, por uns momentos de ilusão de um prazer procurado numa cama desconhecida, ficou perante uns farrapos de angústia e uma sujidade que, dias depois, ainda infestava seu corpo. E a esperança se esfumou nos ventos da perplexidade. Perdeu um amanhã, dissipou um amor que crescia e se afundou, pois até o amigo se perdeu numa noite de trovoada. Existir exige mais do que se por oferecer e a vida é um peso que verga os ombros. E o perigo vai crescendo e jamais poderá livrar-se de si mesma. Perde-se a vontade e ela sente o perigo de estar só, incapaz de construir caminhos para que a visitem na sua ilha particular. Uma ilha rodeada de angústias, temores e falsos prazeres.

Para além de todo o medo que ela sente de tudo e de todos, que não mais confia, por falta de coragem, por falta de vontade, por sua culpa. Pensa que talvez surja alguém com vontade de a salvar, não sabe do quê ou de quem, a não ser de si própria e isso ninguém vai conseguir. Deseja, em desespero, nunca finalizar um pensamento porque sabe que é exactamente aí que reside todo o perigo.

E agora que a noite me acolhe, tento descobrir porque escrevo na terceira pessoa como se fosse uma desconhecida de mim mesma.

quinta-feira, outubro 06, 2005

O Homem Invisivel

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Passara uma semana desde que Diogo festejara o seu aniversário na solidão do seu apartamento. Durante alguns instantes, fugazes no tempo, sentira uma espécie de branco, um vazio de memória, sobre quantos anos fazia. Fez algumas contas e chegou ao 43. Naquele dia celebrava 43 anos de idade. Mais um aniversário que não festejava. Quantos foram já? Era mais fácil fazer as contas ao contrário, tão poucos eles foram, em toda a sua vida. Na verdade não tinha qualquer importância para si. Um dia como outro qualquer, um traço na folha de calendário. Depois, não tinha ninguém com quem partilhar.

Lembrava-se que, em todos aqueles anos, apenas festejara duas, não, na verdade foram três. Dias quando criança, ambas oferta de uns padrinhos com algumas posses. A primeira quando entrara para a escola. Um pequeno bolo, mais farinha do que açúcar, e uma vela. A segunda quando terminou a primária. Um bolo comprado na ocasião e a vela foi esquecida. Depois disso os padrinhos foram viver para um outro lugar e esqueceram o afilhado.

A terceira, já adulto, decorrera no seu primeiro ano de empresa. Uma tradição instituída desde o inicio da empresa. Cada secção tinha uma lista do pessoal com as datas de aniversário. Depois da hora do expediente reuniam-se todos, abriam uma garrafa de espumante, que a chefia tinha comprado por atacado numa feira de vinhos e partiam um bolo que a secretária se encarregara de comprar, com a participação de todos. No ano seguinte, por uma qualquer razão, o dia do seu aniversário foi esquecido, ganhou hábito e assim se manteve em todos os anos.

Com mais cinco irmãos. Sem grandes possibilidades para festas, era fácil, conveniente até, os pais esquecerem-se dos aniversários dos filhos. Como o deles próprios, que nisso não faziam distinção. Os tempos não eram de festanças. Trabalhar para o pão, pagar o aluguer e tudo o resto eram luxos. Porque por muito que a gente pense, na merda desta terra há mais gente pobre do que rica.

Não entendia porque é que, naquela noite, as imagens da sua infância corriam frente aos seus olhos. Não se recordava de alguma vez isso ter acontecido. Há já muito tempo que se deixara de nostalgias. Vivia o seu dia a dia, sem nunca pensar no ontem e nem desejar o amanhã.

Pedira pelo telefone um jantar chinês. Normalmente confeccionava as suas refeições e apreciava aqueles momentos que passava na cozinha. Naquela noite resolvera oferecer a si próprio um pequeno luxo. Não apreciava comer em restaurantes. Preferia a quietude do seu apartamento ao bulício de uma sala cheia de gente falando alto, para mostrar aos outros que estavam ali. Abrira uma garrafa de vinho que há meses, num momento de loucura, comprara numa feira de vinhos, e logo ele que não era apreciador de vinhos. Guardara aquela garrafa para um momento especial, que nunca chegara. A intenção era partilhar com alguém. Sempre achou que não era bom beber sozinho. Naquela noite considerou que os seus 43 anos, era o pretexto certo para abrir a garrafa.

Dois meses antes, ele e mais sete colegas foram chamados à administração e, numa cerimónia simples e demasiado sem sentido, porque nenhum dos presentes sentia qualquer autenticidade da cena. Todos estavam presentes porque eram obrigados e tinham de sorrir para disfarçar o grande frete que tudo aquilo era. Os setes funcionários foram felicitados pelos 15 anos de empresa e oferecido a cada um, para marcar a efeméride, uma carteira em pele, com as iniciais do nome em ouro. Cada director proferiu algumas palavras de elogia e simpatia. Circunstanciais, vazias e decoradas, por tantas vezes repetidas, Apenas os nomes mudavam. Quando chegou a sua vez, o seu chefe gaguejou e não soube o que dizer. Não o conhecia o suficiente, apesar de todos aqueles anos. Acabara por atirar com uns quantos lugares comuns, que em nada o comprometiam, mas também nada diziam. Uma intervenção de palavras vazias que tanto podia servir para ele, como para a mulher da limpeza. Diogo tinha perfeita consciência que era um funcionário eficiente, um profissional responsável, mas invisível. Há muito que deixara de lutar contra essa invisibilidade, se é que alguma vez o tentara de verdade. Executava o seu trabalho em silêncio na solidão da sua secretária. Sempre que o serviço exigia ficava depois da hora. Não tinha ninguém à espera, nenhum compromisso e essa disponibilidade era muitas vezes aproveitada pelos colegas. Não se queixava. Quando saia dentro do horário, arrumava cuidadosamente os papéis, limpava com a mão um inexistente resquício de pó da secretária, atirava um tímido até amanhã, a que ninguém se dava ao cuidado de responder, e abandonava o edifício de dez andares, pelo elevador de serviço.

Deambulava sem direcção pelas ruas da baixa, parava numa ou noutra montra, sem prestar grande atenção e seguia para casa. Assim eram todos os seus dias. Até que um dia tudo mudou. Exactamente dois meses antes do seu aniversário. Para ser mais preciso no dia seguinte em que recebera a carteira.

Na companhia do chefe, a Laura fora apresentada a todos os funcionários da secção, como uma nova colega. Chegara junto do Diogo. Este levantou-se num gesto de cortesia, estendeu a mão e ergueu os olhos. Foi como se tivesse recebido uma descarga eléctrica. Nunca, até então, tivera aquela sensação.

De mulheres conhecia pouco. Umas breves ligações, sem história nem consequências, na adolescência, originadas por um ou outro trabalho de grupo que os afazeres escolares exigiam e a falta de tempo de trabalhador estudante obrigava. Dividia o seu tempo entre o trabalho e os estudos à noite. Na faculdade, tinha acontecido um breve caso com uma colega de curso e que lhe despertara algum sentimento, mas mais uma vez a sua invisibilidade fora mais forte e ela nem se dera conta da sua existência. De tempos a tempos, quando as suas necessidades eram mais exigentes, comprava uma hora de prazer, não havia conversas nem sentimentos e durante largos meses não pensava mais no assunto. Momentos havia que recorria a um satisfazer solitário.

Passara todo o dia sem conseguir se concentrar no trabalho o que nele nunca tinha acontecido. A sua vontade era levantar a cabeça e olhar para a nova colega. Divorciada, 38 anos, mãe de uma filha de 4 anos. Aquele primeiro dia fora um sofrimento. Parecia que as horas não passavam, que os ponteiros do relógio, colocado na parede em frente, se mantinham inertes. Queria sair, tinha urgência em respirar.

Todos os dias, Diogo bebia cada movimento da Laura, pulsava a cada olhar que se cruzava. Aprendeu a admirar as suas formas definidas, os seus traços, as suas curvas, o seu jeito leve de andar. Cada tecla que tocava, cada número que surgia no ecran, cada fórmula que construía, cada equação que resolvia, tudo se conjugava na construção de um sonho. Isso era Laura, um sonho. Ele bem o sabia. Jamais poderia tocá-la, jamais poderia senti-la nos seus braços, possui-la como mulher e amante, um amor que ultrapassava as fronteiras do sublime.

O tempo ía passando e Diogo aprendeu uma nova lição, a se conformar. Saciava seus desejos numa visão pura e simples, o seu perfume, a melodia da sua voz. E Diogo de solitário passou a triste. Os seus temores gritavam-lhe que nunca iria ter a coragem de falar do que sentia, nem a ela nem a ninguém. Observava os risos, as conversas soltas, e deliciava-se quando a ouvia rir.

Trocaram algumas palavras. Laura sempre o recebia com um sorriso e uma palavra simpática. Gostava dele e lamentava a sua timidez. Uma ocasião pensou em o convidar para um bebida no fim do trabalho; afinal era uma mulher livre, mas Diogo era um homem fugidio e ela ainda não se decidira. Tinha algum receio de receber uma recusa e sentir-se desconfortável por isso.

No dia seguinte ao ter festejado o seu aniversário na solidão do seu apartamento, Diogo, sentado à sua secretária, viu a Laura entrar na sala onde se encontrava a máquina de fotocópias. Passara junto de si, sorriu-lhe e deixou no ar o seu perfume. Ele fechou os olhos, inebriado. Durante alguns instantes não conseguiu respirar. Um pensamento, um desejo, um impulso, ou então algo que de repente resolvei desabrochar. Olhou em volta. Todos estavam absortos no trabalho. Mas mesmo que não estivessem ele sabia que, fizesse ele o que fizesse, seria simplesmente ignorado. A sua invisibilidade era permanente e disso ele tinha perfeita consciência. Sentiu os pulmões inundados de um a forma agressiva, pelo perfume de Laura. O seu corpo estremeceu, as suas mãos suavam, o coração batia descompassadamente. Os movimentos deixaram de ser comandados pelo cérebro e dentro de si nas céu uma vontade incontrolável de sair dali a correr, antes que morra ou se mate de amor. Possuído por um desejo infinitamente maior que ele, Diogo levantou-se e, com passos firmes e determinados, dirigiu-se à pequena sala. O cérebro gritava para que parasse e regressasse à solidão da sua secretária. Recusou ouvir. Entrou e ficou olhando-a, como se de repente, não soubesse como tinha ido ali parar. Laura levantou os olhos e sorriu. Ela era a única que sempre sorria para ele. Diogo deu um passo em frente, estendeu os braços e, se alguma resistência houvera, ficou subjugada na ternura daquele abraço e afogada na profundidade naquele beijo. Beijou-a como nunca tinha beijado na sua vida. Nem sequer em sonhos. Tanto desespero naquele acto. Laura não se moveu. Não resistiu. Foi como se também esperasse aquele momento. Como se o desejasse. Como se tivesse a certeza que ía acontecer. Inconsciente fechou os olhos e deixou-se vogar na onda enorme daquela ternura. Não soube se correspondeu ao beijo se não, mas isso, naquele instante, pouco importava. Uma coisa ela sentiu, havia desespero e amor naquele beijo e por momentos viveu dentro de si uma intensa felicidade. Inexplicável mas verdadeira.

Num impulso, ele se afastou, pediu perdão com as lágrimas correndo pelas faces e saíu correndo. Parou junto à secretária. Olhou em volta. Ninguém se apercebia da sua presença. Continuava a ser um homem invisível. Curvou-se um pouco sobre a secretária e, mais cuidadosamente do que o habitual, arrumou em pequenos montes, todos os papeis. Encostou a cadeira de rodas junto à secretária. Voltou a olhar em redor. Depois, num passo firme e decidido, encaminhou-se para a porta de vidro que dava acesso a uma pequena varanda sobranceira ao pátio principal. A sua secção situava-se no oitavo andar. Sem olhar para atrás lançou-se no vazio. Soltou um grito de desespero e depois um baque seco. Todos levantaram os olhos. Levou alguns instantes até que alguém conseguisse perceber o que se tinha passado. Apontaram para a porta aberta. Diogo jazia morto no chão do pátio principal, a poucos metros dos carros estacionados.

Laura, enquanto isso, continuava a tirar fotocópias. Na sua mente um turbilhão de pensamentos. Estranhamente admirava a coragem, o impulso e o frémito daquele beijo. Todas aquelas sensações despertadas. Será que estava a enlouquecer? Ou estaria sendo feliz pela primeira vez? Cedeu à vontade louca de correr atrás dele, pedir desculpas pelo medo que sentira. Ele precisava de saber que não lhe era indiferente. Tantas vezes tivera vontade de lhe falar, meter conversa, fazer convite, mas ele era uma pessoa tão fechada, tão arredia.

Regressou à sala e viu o alvoroço. Num relance sentiu mais do que descobriu o que se passara.

Sem falar com ninguém abandonou o edifício e fechou-se em casa. Deitou-se na cama e ali ficou dias esquecidos. Estava certa que Diogo a qualquer instante entraria pela porta do seu quarto e lhe roubaria, com um beijo, a sua própria vida. E a partir desse momento deixaria de ser um homem invisível.

domingo, outubro 02, 2005

Inerte

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Basta apenas uma só flor, de qualquer perfume que nos inebria e se vira para um horizonte por descobrir. No ar, no mar de um oceano por navegar, na forte emoção de viver tempestade e de um olhar de um jamais de mãos erguidas num alcançar perdido. Foi o que afirmou o filósofo, bretão, estranho, pulsando na ponta da língua o muito que ficou por dizer. Vá, conta-me o que te mata, o que destrói o teu sentir. Diz-me o que comanda o teu coração. Esse que pulsa em teu peito, vestido de vermelho a martelar, incessante, a suprimir todos os medos, os que ficam e os que se perdem na areia molhada de uma praia deserta. Certeira, directa à espinha, enquanto grita verde a canção do nunca mais e ficas. Ali. Inerte. Paralítica. Na procura de uma cadeira de rodas. Perdida no caminhar.

sábado, setembro 10, 2005

A VERDADE DA VIDA

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Os andrajos que, de uma forma tão evidentemente precária, cobria o corpo estigmatizado pelos anos e pelos atropelos da vida, os sulcos que marcavam o rosto sofrido, os cabelos desgrenhados de cor indefinida, cada movimento das mãos enrugadas, eram prenúncios de morte da imagem construída num tempo esquecido, dúvida em crescendo se alguma vez esse dia tenha existido,

Fedia por cada poro da pele, lixo de poeiras e chuvas, carne seca esquecida e uma mistura de óleo e suor. Fétida, pobre e possuída de uma infelicidade que os olhos mortiços gritavam aos ventos. A sua pele, que os rasgões nos andrajos, que artista algum jamais teria coragem de chamar de roupas, mostravam, era povoada pelos bichos que a faziam coçar-se a cada movimento, feridas que se abriam no desespero de cada gesto, sangue e pus se misturavam em cores violáceas.

A sua alma era um caudal de um rio pelo desaguar de saudades perdidas, memórias imensas e mágoas profundas. Na sua boca o gosto amargo de um azedume mortal. Em cada esgar do seu rosto, a que ela, teimosamente, continuava a chamar de sorriso, recordava um passado de glória e dor. Foram muitos os corações que destruíra com um simples gesto, a ausência de um sorriso e com palavras vis que o desprezo ditava. Era cruel, sempre o fora e tinha prazer nisso. Se alguma vez tal experiência tivesse sentido, podia jurar que sentia um prazer quase orgásmico, mas tal não dizia, por ignorância, de que muito se vangloriava. Tinha um poder não conquistado, imerecido talvez e com ele destruíra pessoas e sentimentos. Matar um homem com um gesto, abrir chagas com a simples ausência de um sorriso.

Quando mira a sua imagem reflectida nalgum pedaço de espelho, que os caprichos do destino fizera chegar às suas mãos, em nenhum dos traços consegue descobrir, por muito que seja o esforço de memória, indícios, por mais leves que fossem, dos tempos áureos de outrora, em que cada instante era ocupado para brincar de seduzir. Simples forma de passar o tempo, preencher vazios e caprichos. E os risos que cortavam a noite.

Destruiu lares, casamentos, famílias, por vaidade, por capricho ou apenas para sentir o doce amargo de um poder que a natureza, por vezes madrasta, lhe oferecera. Em boa verdade, ela nunca amara ninguém. Se tal acontecesse teria de reconhecer uma faculdade de sentir. Jamais se permitiria viver paixões que lhe tomassem as rédeas do seu próprio destino. Naquele tempo pensava, convencida, certa, que era a sua vontade que traçava as linhas mestras do seu destino. Nada, nem ninguém tinha forças para provocar desvios, causar incertezas, levantar dúvidas. Convicta, clamava que tinha vindo ao mundo para matar, jamais para ser morta. Fugazes foram os momentos em que estas imagens desfilavam frente aos seus olhos, quando olhava para o pedaço do espelho.

Semicerrou os olhos numa desesperada tentativa de negar a evidência. Perante si própria tinha uma mulher envelhecida, respirando amargura e desnuda de roupas e sentimentos. Os peitos caídos de peles enrugadas, as pernas cobertas de varizes e chagas mal curadas, os poucos amarelecidos pelo fumo e pelo vícios. Tão longe os vestidos de sede e assinatura, os salões resplandecentes, os sorrisos servis, as homenagens a uma beleza que ela julgava eterna.

Depois de tanto abandonar, perdeu a conta, esqueceu no tempo, por vezes no dia seguinte, eis que a verdade da vida caiu em seus braços, apertou-a num amplexo de dor e esquecimento e foi, por sua vez, abandonada em igual número e intensidade. E desistiu, abandonando-se, à sua própria fragilidade. Abandonou crenças, valores, ideais e, pior que tudo, o respeito por si mesma. Passou a ser cruel consigo própria, como se um destino caprichoso a obrigasse a beber do seu próprio veneno. Sentiu pela primeira vez o peso da infelicidade. Infeliz, a palavra que renegava, sentimento que queria longe de si. Isso era para os outros, não para si. Recusava com raiva chorar todas as lágrimas que todos os dias cresciam e se multiplicavam dentro de si, só para não oferecer a ninguém o prazer de ver uma só lágrima sua. Entupia as emoções, estrangulava sentimentos. Nada reconhecia, tudo negava.

Afinal o que escondia aqueles andrajos, de rasgões e sujidade? Que procurava disfarçar o emaranhado de cabelos sujos e despenteados? Que verdade da vida ela escondia?

Mulher que perdera no tempo a idade que tinha, o ano em que nascera, qual o lugar onde aprendera as primeiras letras, que jardins a viram correr, por que caminhos os seus passos percorreram. Tudo ficara num tempo há muito perdido. Só uma coisa recordava, só um pormenor guardara, fizera só seu em silêncio profundo. Numa tarde em que o copo de leite e o pão com manteiga do lanche ficara abandonado em cima da mesa da cozinha.

No seu quarto, de rendas e bonecas, na sua frágil caminha de menina de cinco anos, o seu pequeno corpo se abria forçado, a dor abafada pelo resfolegar de uma respiração viciosa, as lágrimas que teimavam em não se soltarem e minutos depois, que duraram uma eternidade, o silêncio desceu. E foi ele, o silêncio, que piedosamente cobriu a nudez desvirginada da menina de cinco anos que deixara de o ser.

Ai, pobres andrajos que pouco tapavam e nada disfarçavam. E o que bela fedia não conseguia fazer esquecer as dores sentidas, os segredos escondidos, as lágrimas contidas, as vergonhas sufocadas, os silêncios esmagados. Sem o saber, ela tornou-se a lama tratada do corpo de um homem tosco, vicioso.

E calou, esmagando no silêncio vontades e sonhos. Anos a fio ninguém soube de onde vinha tamanha amargura, qual a causa daquela infinita tristeza, que raio é que a garota tem?, perguntava sem nada entender, ou talvez sim, aquela que lhe dera a vida e que ao lado dele dormia. E assim ficou uma das partes da equação. Ela era a soma de todos os medos, das feridas por cicatrizar.

Anos depois conheceu o seu primeiro homem. Sorriu, passou a mão pelo seu rosto, encontrou os lábios aos seus e aguardou. Sem pressas e com ternura que ela, intimamente, agradeceu. Deixou escapar um suspiro de esperança, abriu-lhe os braços, entregou-lhe o coração e foi dele numa entrega de raiva e amor. Pouco mais de um ano depois, foi assassinado numa rixa de bar. Sem motivo, sem explicação, sem consequências. Pensou em desistir, mas uma força que não conseguiu compreender, disse-lhe para ficar e ela ficou. Não acabaria com a sua vida. Achou que seria cruel acabar com a sua própria vida. Daria ao mundo o espaço para mais alguém. Um alguém que podia ser violentado, como ela o fora, vil como ela se tornara. Para quê mais um da sua laia neste mundo de merda, dor e lágrimas. E assim viveu até ao último minuto, seca, infeliz e condenada.

Emprenhou duas vezes. Nas duas ela mesmo arrancou do ventre a vida que gerava. A primeira pediu ajuda, na segunda ela própria o fez.

Naquele que seria o seu último dia, caminhava pela calçada deserta falando consigo mesma, balbuciando palavras desconexas. Ninguém lhe prestava a menor atenção. Os poucos que passavam disfarçavam, olhando para o lado ou então mudavam de passeio. Uma vez por outra, lançavam sobre ela olhares de piedade que respondia com ódio e desprezo. Odiava os homens, a sua falsa compaixão. Uns quantos, nunca sabia quem eram nem o que pretendiam, falavam-lhe de Deus, de bondade, de ternura, palavras vãs, desconhecidas, falas de sentido. Na sua mente distorcida imaginava um Cristo violentado aos cinco anos e que transferiu este fardo a todos os outros, a ela, ao mundo inteiro. Repugnava-lhe a ideia de ter sido dela a responsabilidade de transportar para toda a humanidade o peso que carregava em seus ombros, a dor que transportava no coração e o ódio que trespassava em cada olhar.

Cansada por todo aquele caminhar incerto, sentou-se na berma da estrada, deixando que um suspiro resignado escapasse da garganta. Fechou os olhos e, no ecran gigante do outro lado da estrada, reviu inteira toda a sua vida e, num desespero mortal derramou a sua primeira lágrima do tamanho do oceano. Ao longe, os sinos da torre de uma igreja algures tocaram, anunciando a hora de uma qualquer oração. Sorriu. Os sinos tocavam a rebate na sua morte anunciada. Porquê, só agora, interrogou-se. Levantou os olhos e olhou os céus. À sua volta, voavam gaivotas. Por segundos achou estranho gaivotas voando naquele local, tão longe do mar. Voltou a fechar os olhos, esqueceu o estranho esvoaçar das gaivotas e ouviu o último toque dos sinos perdendo-se no ar. Ainda teve tempo e consciência de sentir o corpo tremer e uma dor fina trespassar-lhe o coração. O corpo tombou empobrecida, feia, seca.

Foi enterrada em vala comum. Parentes, se os tinha, estavam há muito perdidos no esquecimento. Fedia demais para que alguém tivesse piedade da sua alma, ela que, afinal, merecia toda a piedade do mundo.

Um dos coveiros, num gesto inconsciente, com dois pedaços de madeira já carcomida pelo tempo, improvisou uma cruz e atirou para cima do corpo da mulher. Apesar de muitos anos de vida, era naquele sítio onde mais abominava enterrar pessoas. Nunca tinham nome. Para aquela, sem conseguir explicar porquê, resolveu inventar um, ao mesmo tempo que proferia um espécie de oração fúnebre.

Aqui jaz Leonor, sem sobrenome e ninguém para chorar a sua morte” E atirou a primeira pá de cal. “Não deixa saudades, paixões, dinheiro ou bens” A segunda pá de cal tapou-lhe a cara. “Não tem roupas, móveis, casas nem sonhos”. Do monte de terra ao lado, encheu a pá e arremessou para a vala. “Morta desde o cinco anos de idade. Aqui, a partir de agora, renascida virgem”. E um monte de terra cobriu por completo o corpo. “Que Deus tenha piedade da sua alma. Os homens nunca tiveram”.

E nada mais ficou do que um monte de terra. O homem limpou o suor com as costas da mão, endireitou o boné e virou as costas à vala comum. Chegara ao fim de mais um dia de trabalho.

sábado, agosto 20, 2005

Escrevi teu nome

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Andei perdido por campos e vales, caminhei por prados, serpenteei por entre as árvores, procurei muros esquecidos ainda não demolidos, tirei os sapatos e caminhei descalço na areia molhada da praia deserta, ergui os olhos ao céu, estendi os braços para a terra, tudo para encontrar o espaço certo e apenas o vazio abracei. Foi então que decidi escrever o teu nome nas portas e janelas. Essas eu sei que as posso abrir. Queria também saber te desenhar. Não em telas com pincéis e tinta. Essas com o tempo precisam de restauro. Mas não vou conseguir, bem sei. Tentar quem sabe… Era só para poder mostrar os teus traços perfeitos, a luminosidade do teu sorriso, a tua boca cheia de beijo. Queria que as minhas mãos pudessem reproduzir os contornos e com um leve toque fazer sobressair a textura aveludada da tua pele. Há um não sei quê de etéreo no teu peito, um calor que parece ter uma conexidade directa ao meu. Pode ser ilusão, pode ser sonho, pode ser fuga, pode ser o que seja, mas pode. Uma ponte, uma passagem, um caminho entre o meu coração e teu.

Resolvi despir-me de todos os meus medos. Atirei para longe naquele dia ao fim de tarde, lembras?, entre lágrimas e abraços, num afoguear precipitado e covarde. Depois dali, as folhas caídas de finais de Outono, cúmplices de uma dor antecipada que talvez jamais possa vir a acontecer, deixaram-me antever o demasiado óbvio, aquele medo que é filho do amor imenso que corre entre desejos e sonhos meus. Rápido. Mas com a certeza do desfalecer. Apressado. Mas inegável.

O riso silvado das hienas corta o silêncio da noite na expectativa de um vacilar, mas ambos sabemos que elas vão sucumbir à certeza de que não podemos mais fugir, desta vez vamos agarrar todos os medos de tantos anos, os meus e os teus juntos. E tantos são. Tu sabes e eu sei que somos velhos demais para sermos tão estupidamente inocentes. E jovens demais para envelhecer tão depressa com todos os nossos medos.

São imensas as histórias que temos para descobrir, tantas são as causas para contar e em desfilada defender. Todas aquelas pequenas grandes coisas que povoam os nossos sentidos, as cores que nossos olhos admiram, poesias que nos fazem estremecer, de imagens e amigos, de amores e paixões, de sexo que fizemos e desejamos repetir, de épocas que vivemos e muitas outras que ansiamos viver, de todos os sonhos que restaram e tantos outros que se foram. Sabemos ambos que temos aquele abismo dos anos que se foram e a gravação das imagens que nunca tivemos oportunidade de vermos juntos. Mas a ponte que atravessa o rio que nos separa, apesar de imensa nos une. Os seus alicerces são de concreto testado, granito provado, ferro forjado na bigorna do inferno. Toda aquela mistura de materiais, de que não somos totalmente alheios, que serviram para solidificar tudo o que construímos nas nossas buscas diárias. Metal e algodão.

Todos os encontros que idealizamos em cada pormenor, cada gesto construído segundo a segundo, neste entretanto, no antes do nosso reencontro, foram apenas ensaios, tantos vezes infelizes e frustrados, para que finalmente os nossos braços se fechassem em redor dos nossos corpos. Nesse instante descobrimos o que já há muito sabíamos; nascemos para ser cor da mesma pintura, notas da mesma música, palavras do mesmo verso, águas do mesmo rio.

Aqui derramo os ciúmes dos dias em que não fui testemunha dos teus risos, não enxuguei as tuas lágrimas com beijos, não participei dos teus gozos e prazeres e não chorei as tuas frustrações, dos fios de cabelo que têm mais tempo contigo do que eu.

Hoje festejo o aniversário de quando os meus lábios casaram com os teus, num ritual silencioso, que redescobri o amor na sua plenitude, que fecho os olhos e vejo o teu rosto, que faço de ti protagonista de todos os meus sonhos e és a fonte de todos os meus desejos, todos os dias, em cada amanhecer.

Toda a beleza que vejo nos teus traços são reflexos das tuas formas e cores perfeitas. Que a perfeição seja apenas o amor que vês em mim. Igual ao que vejo em ti. Na mesma medida. Sem medida alguma. Envolto nas mesmas regras, sem regras nenhumas. E que caminhe tranquilo, meses e anos vindouros, sôfrego por não se bastar. O amor, recheado de paixão, nos faz querer sempre mais e nunca se bastará.
A minha fonte, porém, acaba aí: em ti. Onde está toda a vida, todo o extravasar, toda a beleza, todo o encaixe para o meu corpo e meus sentidos.
Aquém e além do que é óbvio ser dito, que jamais direi pois, como tantas outras, estas folhas de papel, vão cair amarrotadas no cesto dos papeis. Tenho de apressar-me, o carro do lixo passa às dez horas.